O que de fato ocorreu no país: uma greve de caminhoneiros? Um locaute orquestrado por patrões gananciosos? A manifestação dos caminhoneiros espocou por questões fiscais, uma rebelião do contribuinte. A incompetência do governo atual para lidar com a questão revela a falta de representação popular, uma grave ruptura para o poder de tributar.
A democracia reconquistada há três décadas foi refundada com base em uma ferramenta política elaborada por representantes populares, especialmente mandatados para tal tarefa. Nascia ali a Constituição Federal, classificada como “cidadã” pelo seu caráter social-democrata, garantindo direitos humanos em um primeiro bloco de regras, a organização do Estado no segundo e os direitos sociais no terceiro bloco.
Essa tríade estrutural tinha por objetivo dar ao cidadão um instrumento de suficiência política para viver em um Brasil democrático, mais justo sob a perspectiva social. Faltou na Constituição um ajuste para que o cidadão não se visse desamparado, sitiado em sua casa sem o direito de ir e vir —o mais sagrado dos direitos.
Esse ajuste constitucional se encontra na representação, pois o chamado “centrão”, o mesmo que hoje desgoverna o país, tomou o texto constitucional de assalto e o fez promulgar em outubro de 1988, sem alterar profundamente as regras eleitorais.
A omissão da reforma eleitoral deixou o cidadão com uma ferramenta moderna, porém nas mãos de uma classe política antiquada. A técnica constituinte orquestrada por políticos, muitos deles hoje investigados ou condenados por corrupção na operação Lava Jato, foi de aprovar um texto para garantir direitos fundamentais e promover benefícios sociais, sem alterar a estrutura de poder do Estado, que afinal garante o que há de mais antigo e nocivo para o cidadão contribuinte, o patrimonialismo.
Ao evitar a revisão do sistema eleitoral e engessar o texto constitucional com cláusulas pétreas ou petrificadas no tempo, o constituinte evitou a mudança efetiva de questões fiscais pelo voto, pois deixou de tocar no ponto mais sensível do problema, a vontade geral —o exercício do direito de voto.
É paradoxal e ao mesmo tempo significativo que, em pleno ano de eleições e de profunda crise econômica e social, o cidadão se sinta desamparado e sem representação política para resolver os problemas que o afligem. A falta de representantes que se identifiquem com o eleitor fez com que a crise fiscal atingisse seu patamar mais agudo, com um Estado incapaz de arcar com as despesas essenciais a que se obriga pelo texto constitucional.
Onde estão os representantes dos eleitores para responder pela crise fiscal que fez eclodir os movimentos grevistas? Procura-se o representante político que aumenta os gastos em obras faraônicas, que aumenta o gasto público com folha de salários, que aumenta os impostos, que aumenta a dívida pública, que outorga renúncia fiscal sem justificativa, que está no Congresso somente de terça a quinta-feira em horários determinados, que não vota as medidas urgentes de ajuste nas contas públicas.
Em vez de chamar o Exército para desbloquear estradas, o governo deveria chamar os congressistas para tal tarefa. Eles deveriam explicar o que fizeram (e principalmente o que não fizeram) para que os caminhoneiros —autônomos, empregados ou empresários— tenham que pagar para exercer sua profissão.
Essa mesma explicação esperam os demais cidadãos, aqueles que estão nas filas dos postos de combustível ou correndo aos supermercados para estocar produtos, como boiada estourada. Ora, se tenho um representante político eleito por meu voto, a quem confiei promover ações para fazer valer os direitos que a Constituição Federal me deu, é esse o representante que deve resolver o problema que ele mesmo criou.
A greve atual é uma rebelião de natureza fiscal, de natureza política e de natureza representativa. O rebelde que estaciona seu caminhão e bloqueia estradas está cometendo um delito, sem dúvida, mas esse ato pode ser visto como de resistência ao aumento de preços de combustível, que é de natureza fiscal. A causa disso está na incompetência dos representantes do povo em promover a administração do Estado brasileiro.
Se esse rebelde promove um ato extremo é porque não vê em seu representante eleito um agente capaz de votar leis e fiscalizar a administração pública, para que o tributo pago seja suficiente ao custeio das despesas do Estado. Seria prematuro dizer que estamos diante de um Boston Tea Party, mas traços de inconfidência nos remetem às manifestações de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus.
Antes que a situação se agrave e os movimentos se generalizem país afora, o que seria trágico, é preciso pensar em uma saída. A reconstrução da democracia passa pela eleição de novos representantes, reforma do Estado e, principalmente, reforma eleitoral completa, sem o que não haverá mudança, apenas mais um show de marketing eleitoreiro populista. Dos atuais impostos e políticos o povo está farto.