O entendimento do STJ sobre a necessidade de má-fé para devolução em dobro de cobrança indevida

Por Marcela Ruiz Cavallo

 

Uma recorrente controvérsia no Superior Tribunal de Justiça pode ganhar novos capítulos em breve. Trata-se da discussão acerca da necessidade (ou não) de comprovação de má-fé para devolução em dobro de cobrança realizada indevidamente nas relações de consumo.

E o tema de fato é polêmico. Em sua previsão legal, constante no parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, tal requisito não está previsto, porém foi incorporado pelos tribunais de todo o país, possivelmente como ferramenta para limitar a aplicação de tal prerrogativa legal e evitar onerar excessivamente as empresas. O fato é que o debate se sustenta ante as interpretações distintas da Primeira Seção e da Segunda Seção do STJ.

A Primeira Seção, que lida com relações de direito público, entende pela ausência de necessidade de comprovação de má-fé para que se aplique a penalidade do CDC, pois a partir do momento em que o dispositivo legal, em sua redação, define como exceção à tal regra os casos em que ocorre engano justificável, o legislador pretendia determinar a obrigação de restituição em dobro nos caso que não decorressem de dolo ou culpa na conduta do fornecedor. Ou seja, basta que se verificasse a culpa na conduta para se justificar a restituição em dobro do valor, dispensando, portanto, o requisito de má-fé.

Por sua vez, a Segunda Seção, que lida com as relações de direito privado, entende que a mera culpa não seria apta a ensejar tal reparação em dobro, replicando o entendimento já consolidado sobre a matéria, através do julgamentos de recursos repetitivos pelo STJ e pela Súmula 159 do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito às relações regidas pelo Código Civil – que traz previsão similar em seu artigo 940.

Diante da interpretação divergente acima explanada, a questão foi submetida ao Tema 929/STJ para solução: Discussão quanto às hipóteses de aplicação da repetição em dobro prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.

Após algumas questões processuais, o primeiro posicionamento veio em outubro de 2020, em julgamento em que a Corte Especial decidiu que a devolução em dobro do valor cobrado indevidamente do consumidor é cabível sempre que houver quebra da boa-fé objetiva, afastando a necessidade de comprovação de má-fé ou culpa. Em outras palavras, o consumidor não precisa provar que o fornecedor do produto ou serviço agiu com má-fé, bastando que se caracterize a cobrança indevida como conduta contrária à boa-fé objetiva, presente em todas as relações jurídicas como regra de comportamento de fundo ético, o que na prática quer dizer que, sempre que o fornecedor deixar de observar os deveres de lealdade, transparência, informação correta, clara e adequada, preço justo, colaboração, cooperação, entre outros, pode-se considerar que houve a quebra da boa-fé objetiva.

Contudo, e visando vincular o entendimento em questão aos tribunais do país, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou o Recurso Especial nº 1.823.218/AC ao Tema nº 929, para que seja a matéria analisada sob o rito dos recursos repetitivos.

Desta forma, ainda que a discussão não esteja efetivamente encerrada, já é possível verificar uma tendência do STJ em sedimentar o entendimento da forma acima descrita, e o que muitos encaram como uma vitória do consumidor, pode também gerar uma enorme carga financeira aos fornecedores, que mesmo sem qualquer culpa ou dolo, poderão se ver obrigados a ressarcir em dobro por cobranças indevidas efetuadas.

É evidente que o consumidor, beneficiário que é de uma legislação protetiva, e parte inegavelmente hipossuficiente em suas relações comerciais, deve ser contemplado por medidas como esta a fim de brecar condutas lesivas e não raras dos fornecedores. Contudo, medidas como esta possuem um caráter claramente punitivo, ou seja, possuem como finalidade muito mais a necessidade de frear a má atuação dos fornecedores do que, necessariamente, reparar o consumidor lesado. Com isso, surgem o questionamentos: o abrandamento dos critérios para tal condenação não distorceriam a finalidade de tal dispositivo? Não poderia gerar uma tendência oportunista, como já ocorre com a “indústria dos danos morais”? Possivelmente é um debate que, futuramente, ocorrerá.

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