Startups vendem “fatias” de blockchain em ofertas similares aos IPOs, mas sem qualquer regulação
O mercado financeiro não saiu ileso da disrupção tecnológica. Na era da revolução das fintechs, os players mais antigos do mercado são desafiados a inovar em meios de pagamento, câmbio e funding, por exemplo. O choque é tamanho que o CEO do banco espanhol BBVA, Francisco Gonzáles, fez uma radical previsão: metade dos bancos do mundo, como hoje os conhecemos, desaparecerão em razão das inovações capitaneadas pelas fintechs.
Um movimento que chama a atenção é a aplicação da tecnologia blockchain — um complexo sistema de cadeias criptográficas capaz de manter dados com tamanha segurança que é usado como base para a criação de unidades monetárias. O melhor exemplo é o bitcoin, atualmente a mais disseminada das chamadas criptomoedas, com uma fatia do mercado que equivale a aproximadamente 38 bilhões de dólares (dado do site coinmarketcap.com).
Por representar uma estrutura de registro de dados altamente segura, a blockchain tem diversas aplicações, entre as quais o registro público e o uso como moeda de troca. Essa robustez acabou se alinhando à recente tendência das startups americanas de buscar meios alternativos de financiamento — em substituição ao capital de terceiros (o venture capital) ou até mesmo ao crowdfunding — e assim nasceu o “ICO” (initial coin offering), uma alusão ao termo “IPO”, a conhecida oferta pública inicial de ações.
O ICO só se aplica a startups que tenham seus próprios projetos de blockchain. A ideia do mecanismo não envolve a aquisição de uma fração, juridicamente falando, dos direitos da empresa emissora, mas sim de um bloco (chamado de token) da própria blockchain. Os tokens, tal como o bitcoin, são ofertados como uma nova criptomoeda, que pode ser facilmente vendida sem qualquer intermediário, caso haja demanda. Como a empresa emissora deve necessariamente atuar no ramo de blockchain, o token pode ser um “pedaço” do próprio projeto — um ativo, e não um título.
O grande diferencial, porém, é a falta de regulação dessas operações. O emissor estabelece seus próprios termos quando vende o ativo, fixando o preço, determinando benefícios e condições de resgate, entre outros detalhes. O investidor, por sua vez, tem a chance de vender seu token por um valor muito maior caso a demanda aumente, graças à alta volatilidade que atrai os venture capitalists.
Por outro lado, o token não confere nenhum direito ao investidor: não há dividendos nem participação em assembleias (lembrando que quem dita as regras é o emissor). O ICO não garante qualquer direito a reparação em casos de má administração, prejuízos ou flash crashes — como o que temporariamente derrubou o valor da ethereum (outra criptomoeda) de 320 dólares para 10 centavos de dólar em menos de um segundo. O alto risco e baixa regulação podem afastar os investidores mais contidos. ICOs fraudulentos existem, e não há ninguém para vigiá-los.
Preocupada com esse cenário, a Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado americano, busca urgentemente regularizar o assunto; no Brasil, ainda pouco se fala dele. Em matéria de inovação, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acaba de regular o equity crowdfunding — pela novíssima Instrução 588, de 13 de julho, seguindo o passo da SEC nos EUA — e recentemente publicou estudo sobre fintechs brasileiras e a regulação sobre o setor como um todo. A autarquia, contudo, não reconhece as criptomoedas como valores mobiliários: prefere designá-las “moedas”, sujeitas, portanto, à regulação do Banco Central — que, por sua vez, também não as reconhece. Assim, o ICO permanece no limbo regulatório que lhe garante diferencial.
Por ora, o ICO pode parecer conversa de startups de tecnologia. Porém, se lembrarmos da agressiva penetração da blockchain nos mais diversos setores, a aparência pode enganar. Até maio deste ano, cerca de 380 milhões de dólares já haviam financiado os ICOs. Diversos bancos estão implementando a tecnologia, enquanto alguns especialistas dizem que a ferramenta pode revolucionar não só o sistema monetário, mas todo o sistema financeiro, sendo os “títulos e ações do futuro”.
*Flávio C. Fujita (ffujita@zilveti.com.br) é advogado associado do escritório Zilveti Advogados. Colaborou Guilherme Novi (gmnovi@gmail.com), advogado especialista em direito societário
Fonte: https://capitalaberto.com.br/secoes/artigo/os-titulos-e-acoes-do-futuro/#.WXXi3oTyvIU