Fernando Zilveti é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, professor da FGV e sócio de Zilveti AdvogadosMuito se fala do “espírito animal” do empresário. Uma figura de linguagem criada por Keynes para tratar da razão do empreendedor para investir. Uma questão acima de tudo psicológica, até certo ponto irracional motiva o empresário a crer que seu investimento de capital e trabalho lhe trará resultados futuros. O que o economista britânico desenvolveu em sua obra foi a teoria que o animal spirit não admite cálculo sobre o grau de confiança do empresário para atuar num mercado em que o Estado é ausente. O cálculo racional sobre o risco do fracasso é posto de lado pela confiança psicológica do empreendedor em seu investimento. Algo comparável ao homem saudável que coloca de lado a expectativa da morte. O sentimento do empresário da retribuição do capital é movido pela sua condição psicológica empreendedora.
O mundo mudou muito desde 1936, quando o intervencionista Keynes publicou, pela primeira vez, A Teoria Geral do Emprego, Juro e da Moeda. No século XXI a figura de linguagem de Keynes não cabe mais como recurso de retórica para descrever o que leva o empreendedor a investir seu capital num negócio incerto. O empresário mudou seus traços psicológicos. O mercado também teve alterado seu ambiente natural. É absolutamente anacrônica a imagem do confiante desbravador investindo num ambiente mercadológico inexplorado.
O empresário de hoje se cerca de ferramentas impensáveis no início do século passado. Pode calcular cada passo dado em seu investimento produtivo. Toda a sorte de índices lhe são oferecidos para auxiliar a tomada de decisão. Pode se dizer até que esse emaranhado de ferramentas criam uma realidade virtual, uma realidade estocástica. Até mesmo seu espírito animal pode ser mensurado como se ele fizesse um exame médico. Existe hoje o chamado índice de confiança do empresário. Em outras palavras, é possível calcular como está o espírito animal daquele que investe capital na incerteza do mercado. Imagine um empresário que vai ao médico para verificar sua saúde e, desse modo, afasta o temor da morte. Para tanto, executa uma série de exames laboratoriais que demonstram o regular funcionamento biológico de seu corpo. Não contente com tal constatação científica procura, ainda, descobrir por meio de outra sondagem, esta psicológica, seu índice de confiança, com o intuito de afastar a expectativa de fracasso de seu investimento. Com tudo calculado, o empresário se locomove à sua empresa para lá executar suas atividades empresariais. Se ainda seguir prostrado, pode se socorrer de profissionais da psicologia empresarial que ostentam designações em idioma estrangeiro de adviser, coaching ou mentoring. Esse é o empresário do século XXI, estressado e com medo.
Por outro lado, o mercado atual tampouco pode ser pensado sob a mesma perspectiva do célebre economista Keynes. A hostilidade do ambiente liberal onde o Estado não intervém na atividade privada desapareceu. O Estado da atualidade está presente em toda e qualquer atividade empresarial. Não há mercado no mundo globalizado sem intervenção estatal. Delfim Netto criticou certa vez o Estado brasileiro. Disse que o governo não pode ver nada funcionado que põe nele um encosto. O economista emérito da USP quis ilustrar com o termo encosto a onipresença do Estado no mercado nacional, como uma entidade espírita que se apresenta toda a vez que o empresário tem a iniciativa de arriscar no investimento produtivo. Faltou Delfim Netto dizer, porém, que não há mais mercado sem tal encosto. O que se observa no mercado globalizado, ademais, é a presença de mais um encosto. O espírito supranacional, fruto de tratados internacionais que convencionam a intervenção nas jurisdições contratantes e até mesmo naquelas que não tomam parte na negociação bilateral ou multilateral. Os organismos supranacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, e blocos econômicos, como a União Europeia – UE, pioraram bastante o ambiente intervencionista. Esses organismos fizeram do mercado um ambiente totalmente artificial, onde as condições para desenvolvimento da atividade capitalista são manipuladas. Os agentes de política fiscal globais sequer se submetem mais poder soberano do Estado. O encosto Estado perdeu identidade com a globalização. Manteve seu espectro tenebroso.
O mercado do século XXI, portanto, não é mais como uma floresta inexplorada onde o animal empresário arrisca seu capital e tem que contar apenas com seu espírito desbravador confiante. O mercado de hoje é um parque ecológico, uma reserva ambiental restritiva da atividade empreendedora. Nesse cenário intervencionista se torna de pouca serventia a imagem do espírito animal, como se este pudesse ainda ser despertado por medidas governamentais reguladoras. Não se nega a existência de tal espírito do empresário, porém, ele está adormecido, entorpecido justamente pelo espírito intervencionista estatal. O animal empresário é frequentemente intoxicado pelo Estado e seus remédios de política fiscal. Para o bem do capitalismo se espera o afrouxamento das amarras estatais asfixiantes do espírito empreendedor.
Fonte: DCI