Por Marcela Ruiz Cavallo
Quando analisamos o mercado financeiro sob a ótica contenciosa, percebe-se que a maioria de ações judiciais que envolvem este setor diz respeito à responsabilidade civil fundamentada por alegadas falhas na prestação de serviço das instituições financeiras.
A discussão sobre responsabilidade civil neste setor não é recente. Contudo, nos últimos anos, com a expansão do mercado financeiro de forma geral, algumas particularidades surgiram nas relações entre instituição e usuário, forçando os tribunais a enfrentarem matérias que não estavam habituados.
E para que se analise este comportamento da jurisprudência, é importante entendermos os aspectos gerais da responsabilização civil do setor em nosso ordenamento jurídico. A responsabilidade civil possui como base o Código Civil que, em seu artigo 186, preceitua que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causa dano a outrem, pratica ato ilícito. O dever de indenizar surge no artigo 927 do mesmo diploma legal.
E quando surge a responsabilização por conta da falha de prestação de serviços em relações consumeristas, temos ainda a proteção do Código de Defesa do Consumidor que, como já consolidado pela jurisprudência, é aplicável às instituições financeiras. Dentro deste cenário, surgem algumas preocupações, principalmente no que diz respeito aos limites desta responsabilização.
Para analisarmos tais questões, é necessário vermos alguns contextos jurídicos. É inegável que as instituições bancárias possuem como dever jurídico a adequada prestação de serviço aos seus clientes. Por prestação de serviços adequada, nos referimos ao fornecimento de informações claras e precisas acerca das operações bancárias, atendimento eficiente ao consumidor, contratação em conformidade com a legislação e regulamentações vigentes, cuidados especiais com a segurança e proteção de dados, entre outros.
As principais queixas contra as instituições, já muito conhecidas nos tribunais, não ensejam maiores discussões. Questões que envolvem as denominadas práticas abusivas como, por exemplo, a contratação de serviços sem solicitação dos clientes e, também, as fraudes bancárias, cuja responsabilização está consolidada através da Súmula 479, do STJ, já foram amplamente debatidos nos Tribunais, que entendem pela responsabilização objetiva das instituições financeiras em casos como estes, sendo possível verificar alguma exceções quando é perceptível a culpa exclusiva ou concorrente do cliente no ato que gerou o dano.
Contudo, e com o inegável avanço no setor, o enorme leque de serviços oferecidos pelas instituições financeiras e a presença marcante da inovação no mercado, surgem algumas polêmicas, já objeto de decisões judiciais, que merecem atenção.
A primeira delas diz respeito à aplicação do Código de Defesa do Consumidor na relação entre instituições financeiras e investidores de fundos de investimentos. Como já dito, é consolidado pelos Tribunais Superiores o entendimento de que a proteção consumerista se estende às instituições financeiras, porém tal entendimento possui um viés generalista, sem abordar limites os requisitos, presumindo a hipossuficiência do cliente – no caso analisado, o investidor. Contudo, surge uma importante corrente que defende não ser aplicável nestes casos o Código de Defesa do Consumidor.
Os fundamentos para esta corrente seriam os de que (i) as instituições financeiras prestam serviços ao fundo de investimento, e não aos cotistas, que são investidores do fundo, que é constituído na forma de condomínio, não configurando a relação de consumo direta entre o fundo e o prestador; (ii) a obrigação das instituições financeiras perante os fundos de investimento é de meio, e não de fim, o que afasta a responsabilidade objetiva; e (iii) os investidores em fundos de investimento não se enquadram como consumidores, vez que não seriam os destinatários finais do serviço prestado, além de possuírem experiência e conhecimento sobre o mercado, afastando a qualidade de hipossuficiência.
Este último fundamento, inclusive, já gera impactos na jurisprudência. Através do julgamento do Recurso de Apelação nº 1014153-90.2015.8.26.0100, a 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor por entender que o autor da ação não se enquadrava no conceito de consumidor, vez que efetuou investimentos visando auferir lucros e fomentar suas atividades empresariais.
A polêmica envolvendo a aplicação – ou não – do código consumerista se estende, também, às relações entre corretoras de valores e seus clientes, os investidores. A primeira corrente, que entende pela não aplicação da proteção consumerista nestas relações, justifica sua posição com base no fato de que a legislação em questão objetiva uma aplicação massificada para determinado tipo de relação que não ocorre entre investidor e corretora, vez que o investidor, de forma geral, possui conhecimento no ramo, não se tratando de mero consumidor hipossuficiente e vulnerável, e as corretoras, por sua vez, não se encontram em posição de superioridade, vez que somente executam as ordens do investidor no sistema de bolsa de valores. Além do argumento anterior, tal corrente defende o ponto de que o investidor busca tal serviço visando auferir lucros, não utilizando a prestação de serviço como destinatário final.
Por sua vez, a corrente que entende pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nesta modalidade de prestação de serviços afirma que a relação de consumo é formalmente iniciada através de assinatura de contrato de adesão, oportunidade esta em que resta formalizada a aquisição de um bem ou serviço no mercado financeiro. Tal modalidade de contratação, segundo a corrente, afasta a liberdade de contratar dos investidores, e presume-se, portanto, que os mesmos não estariam munidos das adequadas informações sobre o serviço a ser prestado, surgindo a hipossuficiência vulnerabilidade dos mesmos.
Afastando a questão consumerista, mas ainda sobre as corretoras, nova polêmica surge. Com novas formas de investimento se popularizando, tonou-se cada vez mais comum o investimento por parte da população através de corretoras, vez que não se sente segura para se aventurar neste cenário por conta própria. Contudo, ainda que assessorados por tais corretoras, existe a chance de perda substancial – ou até total – do capital investido. E tal fato gera a seguinte questão: quando estes profissionais serão responsáveis por ressarcir seus clientes em razão de perda ou redução substancial do valor que lhes fora confiado?
A discussão, que ronda nossos tribunais, já desenha algumas tendências. A primeira hipótese em que se verifica o dever de indenizar ocorre nos casos em que a corretora age com dolo ou fraude. Um clássico exemplo de tal situação é verificado quando o corretor realiza operações sem autorização do cliente, ou quando o serviço for prestado por profissional não habilitado.
Porém, ao contrário da hipótese anterior, que já vem bem consolidada em nossos Tribunais, surge um viés mais polêmico quando eventuais perdas ao cliente são originadas por conduta culposa do corretor, e a polêmica surge justamente ante a natureza especulativa das atividades. Neste caso, observa-se grande controvérsia no judiciário, sendo a questão resolvida caso a caso.
Contudo, alguns parâmetros podem ser observados nas respectivas fundamentações. E tais aspectos servem justamente como pontos de atenção às corretoras, de forma a atender tais objetivos visando mitigar os riscos de eventual condenação. Alguns exemplos de tais pontos são a integral observação do dever de informação, elaboração de termo de consentimento, e emissão de relatórios periódicos do investimento efetuado e seus resultados.
Os tópicos acima são apenas parte das diversas polêmicas existentes em nossos tribunais quando analisadas questões inerentes ao mercado financeiro, e conforme o setor for se modernizando, certamente outras surgirão. Por estes motivos, é importante que as instituições financeiras, para mitigar tais riscos, adequem suas práticas de forma a garantir que os clientes estejam sempre munidos das informações necessárias acerca daquilo que está contratando, viabilizem um eficaz canal de atendimento, busquem o claro consentimento de seus clientes para a execução das atividades contratadas com o seu patrimônio e, principalmente, estejam adequadas à legislação e normas que regem o setor.